quarta-feira, 26 de setembro de 2012

OS “EUS” DE FERNANDO PESSOA: ALBERTO CAIEIRO, RICARDO REIS E ÁLVARO DE CAMPOS


Por: Valéria Queiroz Menezes

“[...] construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e idéias, os escreveria”.
(Fernando Pessoa)


RESUMO

Propõe-se ao longo desse trabalho investigar, identificar e destacar quais as especificidades estéticas presentes nas poesias Passagens das horas, Eu nunca guardei rebanhos e Para ser grande ser inteiro, ambas de autoria dos principais heterônimos de Fernando Pessoa, respectivamente Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis; definir o conceito de heteronímia, bem como, situar a obra de Pessoa no período literário que se insere - o Modernismo; apresentar também as características desses heterônimos, como metodologia de análise das poesias e para a montagem de uma sequência didática para aplicação na disciplina Literatura.

Palavras-chave: Literatura, Fernando Pessoa, heterônimos.


Resumen

Proponerse en este trabajo investigar, identificar y destacar cuales son las especificidades estéticas presentes en las poesías Passagens das horas, Eu nunca guardei rebanhos y Para ser grande ser inteiro, ambas de autoría de los principales heterónimos de Fernando Pessoa, respectivamente  Álvaro de Campos, Alberto Caeiro y Ricardo Reis; definir el concepto de heteronimia, también, situar la obra de Pessoa en el periodo literario que  se insiere – el Modernismo;  presentar también las características  de eses heterónimos como metodología de analice de las poesías  para montaje de una secuencia didáctica para aplicación en la disciplina Literatura.

Palabras – clave: Literatura, Fernando Pessoa, heterônimos.


A leitura é uma atividade importante para a vida no homem em sociedade, por isso têm surgido muitas discussões em torno da sua relevância para a formação de leitores e cidadãos críticos. A leitura possibilita ao homem a inserção e participação no meio social e não está limitada apenas no âmbito escolar, mas deve ser uma prática social.  O aprendizado da leitura é uma tarefa contínua e permanente, que é enriquecida com novas habilidades, à medida que compreendemos textos escritos mais complexos. Lista (1996, p. 10) afirma que a “verdadeira leitura só é possível quando se tem um conhecimento prévio”, pois não lemos “apenas a palavra escrita, mas também o próprio mundo que nos cerca”. O sentido de um texto não está em si mesmo, sofre influências do conhecimento de mundo de que o leitor dispõe, assim, à proporção que vai lendo, vai antecipando e inferindo sobre o conteúdo. O interesse pela leitura pode estar relacionado ao texto, oriundo de uma necessidade seja ela informativa ou recreativa. Assim, a compreensão perpassa por um processo estratégico individual. É evidente que a importância da leitura no universo do aluno, abrange questões muito mais profundas, porque deve ser vista como uma das conquistas do homem no seu processo evolutivo. Nesse sentido, significa que toda sociedade, nas suas diferentes etapas evolutivas, produz uma memória cultural e que a leitura vem a ser um dos instrumentos para o conhecimento. É nessa perspectiva, que elaboramos uma proposta para trabalhar com o grande autor Português Fernando Pessoa, a partir de estudos e analise sobre o processo da heteronímia. O trabalho tem como objetivo geral levar a conhecer as características temáticas, estilística dos heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos e relacionar com o período estético literário do Modernismo Português. E como objetivos específicos: Analisar o fenômeno da heteronímia; investigar as diferenças e semelhanças que há entre a produção de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, ambos heterônimos de Fernando Pessoa; verificar os traços marcantes da poesia do autor e sua relação com os sentimentos da contemporaneidade e aplicar os conhecimentos em uma sequência didática no Programa Universidade para Todos, no sentido de preencher lacunas deixadas ao longo da vida escolar do aluno, que inviabiliza o conhecimento mais profundo da obra desse grande autor.
A escolha do autor se deu pela relevância da sua obra, além disso, Pessoa possui um estilo ímpar na literatura, revolucionou inteiramente o ambiente literário português, no início do século XX que estava carente de escritores que dessem continuidade à glória de grandes autores como Antero de Quental e Eça de Queirós, isto porque cria não somente outros escritores – os heterônimos – mas também apresenta estilos diferentes de escrita, fenômeno totalmente inédito, naquela época, em Portugal.  Nesse sentido, pensava o mundo noutra perspectiva: ele cria novas personagens para que esse mundo seja lido de maneiras diferentes. Trabalhar sua obra é buscar incessantemente o filósofo por trás do escritor. Assim, esse trabalho tem, pois, o objetivo de identificar as diferenças e similitudes dos principais autores criados por esse autor português – seus heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, posto que, sua obra joga com a pluralidade de representações e de sentidos para uma visão mais poética do mundo: expressam muito mais que um plano estético remete uma configuração arquetípica e mítica.
                   Pessoa, em seus outros “eus” produz uma imagem do mundo em diversos olhares: a de um pastor de ovelhas, Alberto Caeiro, cuja vida representava o sentir; Ricardo Reis, discípulo de Caeiro, procura atingir o equilíbrio e a paz sem sofrer, através da autodisciplina e Álvaro de Campos, que aprende com Caeiro a urgência de sentir. Campos é visto por Pessoa como vanguardista e cosmopolita, seus poemas exaltam não somente o tom futurista a civilização moderna como também os valores do progresso. Nessa perspectiva, o poeta faz nascer dentre outros três diferentes personagens para expressar suas diversas formas de pensar o mundo, e apresenta como cada um possui sua própria ótica. Portanto, estudar Pessoa é estudar a diversidade de sentimentos e de emoções em relação à vida e ao mundo, visto ser ele o autor dos casos mais complexos e estranhos, senão único, dentro da Literatura Portuguesa. Passado mais de trinta anos da sua morte, a obra de Fernando Pessoa ainda intriga os estudiosos porque além de possuir pontos de comunhão com as obras de Camões, Bocage, Antero, João de Deus, Cesário Verde, Camilo Peçanha, etc., se apresenta carregada de densa problemática, enriquecendo a velha herança recebida de tal modo que alcançou um feito semelhante ao de Camões que acabou recebendo o epíteto camoniano. É pela singularidade desse autor, que multiplicou sua voz poética em outras vozes diferentes dentro do mundo imaginário da Literatura, se faz de extrema relevância que se faça a análise desses heterônomos juntamente com os alunos do Programa Universidade para Todos viabilizando um maior aprofundamento do conhecimento prévio destes.
Partiremos da hipótese que o conhecimento das especificidades da poesia heteronímica de Fernando Pessoa pode favorecer o entendimento a cerca de sua obra e das características do Modernismo Português bem como ampliar o universo literário dos alunos.
    Para o desenvolvimento deste trabalho, a metodologia conta a princípio com a pesquisa bibliográfica de autores que nos dão suporte para a análise e compreensão desta proposta. Como trata de um autor de grande relevância na literatura poética, importa para nós, buscar além das obras, análises a respeito de suas características situá-lo no espaço temporal, mas principalmente pautar a pesquisa pelo fenômeno heteronímico. Essa temática requer um estudo aprofundado a respeito dos seus autores e a vinculação destes ao ortônimo Fernando Pessoa, o seu criador.
   Para o desenvolvimento dessa etapa a metodologia será a leitura e análise dos poemas: Passagem das horas, de Álvaro de Campos; O Guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro e Para ser grande sê inteiro, de Ricardo Reis.
  Feita a seleção bibliográfica de autores que respaldem nossa hipótese, faz-se necessária a seleção do corpus e em seguida análise comparativa de textos dos referidos heterônimos. Por fim a elaboração de uma sequência didática para apresentar o autor, suas especificidades estéticas, definir o conceito de heteronímia, bem como situar a obra no período literário em que está inserida: Modernismo.
   Heterônomo é um nome fictício adotado por um autor na assinatura de uma obra que possui uma personalidade própria e uma obra distinta do seu próprio criador. Não deve ser confundido com pseudônimo. Segundo Fernando Pessoa (Tábua Bibliográfica, Presença, nº 17)
A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora da sua pessoa; é duma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu.
            Pessoa criou inúmeras personalidades literárias para além da sua, cada um deles possui sua própria biografia, sua temática poética e seu estilo. É como se seus eus fragmentados e múltiplos explodissem dentro do artista, gerando poesias totalmente diversas. Os heterônimos se originam, segundo o próprio autor, da sua tendência para a constante despersonificação e simulação. Trata-se de um processo de desdobramento premeditado da personalidade como um meio de criação de um novo autor, com nova identidade estilística, ideológica, cultural, etc.
            Dentre as personagens heteronímicas criadas por Pessoa, Caeiro é considerado mestre de todas elas, ele assume, em sua raiz, o problema da irreversível separação entre a palavra e o mundo, entre o verbo e o homem, determinando a impossibilidade total de conhecimento da realidade.

 Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso.

Pessoa cria uma biografia para Caeiro que se encaixa com perfeição à sua poesia, como podemos observar no “O Guardador de Rebanhos”, que Segundo Pessoa, foi escritos na noite de oito de março de 1914, de um só fôlego, sem interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz exatamente a busca fundamental de Alberto Caeiro: completa  naturalidade. Nasceu em Lisboa, em abril de 1889, e faleceu de tuberculose e, 1915 na mesma cidade. Viveu grande parte da sua vida numa quinta no Ribatejo aonde viria a conhecer Álvaro de Campos. A sua educação cingiu-se à instrução primária, o que combina simplicidade e naturalidade de que ele próprio se reclama. Louro, de olhos azuis, estatura média, um pouco mais baixo que Ricardo Reis. Morreu precocemente (tuberculoso), em 1915. A vida foram seus poemas, aparece a Fernando Pessoa no dia 08 de março de 1914, de forma não planeada. Teve dois discípulos: Ricardo Reis e Álvaro Campos.  Poeta da simplicidade completa e clareza total. É o homem da calma absoluta perante o não-sentido da realidade. “Há metafísica bastante em não pensar em nada [...] O único sentido íntimo das coisas. É elas não terem sentido íntimo nenhum”. Caeiro escreve com a linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês pouco ilustrado. Pratica o realismo sensorial, numa atitude de rejeição a poesia simbolista. Alberto Caeiro apresenta-se como um simples “guardador de rebanhos” que só vê de forma objetiva e natural a realidade. O Mundo é visto sem necessidade de explicações, sem princípios nem fim e por isso acredita na “eterna novidade do mundo”. Recusa o pensamento metafísico Insistindo naquilo a que chama “aprendizagem de desaprender” isto é, aprender a não pensar, para se libertar de todos os modelos ideológicos, culturais ou outros, e poder ver a realidade concreta. O pensamento, segundo Caeiro gera a infelicidade porque deturpa o significado das coisas que existem, “pensar incomodo como andar à chuva quando o vento cresce e parece que chove mais”. Opõe a metafísica o desejo de não pensar. Faz da oposição à reflexão a matéria básica das suas reflexões, “Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?” Relação direta entre sujeito poético e a natureza que revela-nos um ser em paz, reconciliado consigo e com o mundo. Melhor interpretou o Sensacionalismo. Só lhe interessa vivenciar o mundo que capta pelas sensações – realismo sensorial. O único sentido oculto das coisas fica reduzido à própria percepção: cor, forma e existência. Representou a reconstrução integral do paganismo.
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

      No fragmento acima o paganismo de Caeiro intensifica-se. Observe que Cristo é destituído de santidade, ou seja, é visto como uma criança normal: brincalhona, alegre e levada.
Caeiro coloca-se, como inimigo do misticismo. Opõe a metafísica o desejo de não pensar. Faz da oposição à reflexão a matéria básica das suas reflexões.  Aparente simplicidade: linguagem corrente e construções causais. Plano formal: Linguagem simples, léxico objetivo, adjetivação quase ausente; paralelismo, assíndetos1, predominância das formas verbais no presente do indicativo. Plano fônico: ritmo lento; alternância entre sons nasais e vogais abertas e semi-abertas; ausência de rima.

1ausência da conjunção coordenativa a ligar grupos de palavras ou orações coordenadas.

Os principais temas da obra de Caeiro são: Panteísmo sensual (Panteísmo: doutrina segundo a qual Deus não é um ser pessoal distinto do mundo: Deus e o mundo seriam uma só substancia); deambulismo (vida errante), misticismo naturalista (amor pelas coisas em si mesmas), recusa do pensamento, combate à introspecção e à subjetividade; objetivismo absoluto, integração e comunhão com a natureza; vivencia do presente, gozando em cada impressão o seu conteúdo original (epicurismo); crença na eterna novidade das coisas e das idéias; a criança como símbolo supremo da vida; sensacionalismo: preferência pelas sensações visuais e auditivas e paganismo.         
Embora herdeiro da sensibilidade objetiva de seu mestre Ricardo Reis não está empenhado, como aquele, em objetivar sua linguagem, mas em expor e vivenciar poeticamente os preceitos básicos da filosofia pagã. Poeta da simplicidade completa e clareza total. É o homem da calma absoluta perante o não-sentido da realidade Opõe a metafísica o desejo de não pensar. Faz da oposição à reflexão a matéria básica das suas reflexões. “Há metafísica bastante em não pensar em nada [...] O único sentido íntimo das coisas. É elas não terem sentido íntimo nenhum”. Nasceu em Porto, no dia 19 de setembro de 1887; recebeu uma forte educação clássica num colégio de jesuítas; formou-se em medicina, profissão que exerceu; mudou-se para o Brasil em 1919, pois se expatriou espontaneamente; não se sabe ao certo o ano de sua morte. Segundo Pessoa, “Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco (que Caeiro).Cara rapada (... ) de um vaga moreno mate.”  
Em 1924 foram publicadas suas primeiras obras na revista Athena, fundada por Fernando Pessoa; entre 1927 e 1930 foram publicados oito odes na revista Presença, de Coimbra. Discípulo de Caeiro admira a calma e a serenidade com que o mestre encara a vida. Reis procura  atingir o equilíbrio e a paz sem sofrer, através da autodisciplina e das seguintes doutrinas gregas. Adepto ao Epicurismo e ao Estoicismo, não teme a morte; procura os simples prazeres da vida em todos os sentidos, sem preocupações com o futuro (carpe diem) e foge da dor. Tem como ideal ético a apatia; acredita que para alcançar a felicidade é preciso: dominar as paixões e aceitar a ordem universal das coisas, incluindo a morte. Ricardo Reis é o heterônimo mais clássico de Fernando Pessoa. Seu estilo poético faz muitas alusões à mitologia com uma linguagem culta e precisa. Seus poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe rebuscada. Seus poemas são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiásticos, tendo estrofes regulares e variáveis. “Pus em Ricardo Reis a minha disciplina vestida da música que lhe é própria. Reis escreve melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.“ (Fernando Pessoa). Reis recorre sempre aos deuses da mitologia grega, para ele os deuses estão acima de tudo. Dono de um paganismo de caráter erudito, Reis acredita que Cristo é apenas mais um deus, nem superior e nem inferior. Porém, os cristãos querem colocá-lo acima dos outros deuses.

NÃO A TI, Cristo, odeio ou menosprezo
Que aos outros deuses que te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus ...”
(fragmento NÃO A TI, CRISTO,ODEIO...)

Álvaro de Campos (1890 - 1935) é um dos mais conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa. Foi descrito biograficamente por Pessoa: "Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inactividade”. Usa monóculo; é alto (1.75 m); magro, cabelo liso apartado ao lado e tem a cara rapada, tipo judeu português. Segundo Fernando Pessoa, esse heterônimo surge quando sente “um impulso para escrever”. Campos é o extremo oposto de Ricardo Reis e  discípulo  de Caeiro. Campos é o filho indisciplinado da sensação e para ele a sensação é tudo. Aprende com Caeiro a urgência de sentir, é visto por Pessoa como vanguardista e cosmopolita; seus poemas exaltam em tom futurista a civilização moderna e os valores do progresso.
Os traços poéticos de Álvaro de Campos: poeta modernista; sensacionista (odes); cantor das cidades e do cosmopolitanismo (“Ode Triunfal”); cantor da vida marítima em todas as suas dimensões (“Ode Marítima”). Cultua as sensações sem limite, é o poeta do verso torrencial e livre em que o tema do cansaço se torna fulcral; defensor da condição humana partilhada entre o nada da realidade e o tudo dos sonhos (“Tabacaria”); observador do cotidiano da cidade através do seu desencanto e poeta da angústia existencial e da auto-ironia.
A primeira fase da sua produção poética é tem por característica o decandentismo: exprime o tédio, o enfado, o cansaço, a náusea, o abatimento e a necessidade de novas sensações; traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia; marcado pelo romantismo e simbolismo (rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens); abulia, tédio de viver; procura de sensações novas; busca de evasão; único poema dessa fase: Opiário.
A segunda fase de sua produção poética é caracterizada pelo futurismo sensacionalista as quais possui os seguintes traços: elogio da civilização industrial e da técnica; ruptura com o subjetivismo da lírica tradicional; atitude escandalosa: transgressão da moral estabelecida. Na poesia de Campos é nítido o sensacionismo, vivência em excesso das sensações (“Sentir tudo de todas as maneiras” – afastamento de Caeiro); sadismo e masoquismo (“Rasgar-me todo, abrir-me completamente,/ tornar-me passento/ A todos os perfumes de óleos e calores e carvões...”, Ode Triunfal); cantor lúcido do mundo moderno.
O pessimismo também é uma marca na obra de Álvaro Campos, caracterizada pelo sono, cansaço, desilusão, revolta, inadaptação, dispersão, angústia, desânimo e frustração; dissolução do “eu”; a dor de pensar; conflito entre a realidade  e o poeta; cansaço, tédio, abulia; angústia existencial; solidão; nostalgia da infância irremediavelmente perdida (“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”, Aniversário) face á incapacidade das realizações, sente-se abatido, vazio, um marginal, um incompreendido; frustração total: incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento; e mundo exterior e interior.
Sua poesia possui os seguintes traços estilísticos: Verso livre, em geral, muito longo; assonâncias, onomatopéias (por vezes ousadas), aliterações (por vezes ousadas); grafismos expressivos; mistura de níveis de língua; enumerações excessivas, exclamações, interjeições, pontuação emotiva; desvios sintáticos; estrangeirismos, neologismos; subordinação de fonemas; construções nominais, infinitivas e no gerúndio; metáforas ousadas, personificações, hipérboles estética não aristotélica na fase futurista.
O movimento artístico denominado Modernismo, em Portugal, iniciou em 1910, numa época de instabilidade política, em que o país mudava seu regime político de monarquia para república. Porém, o ponto culminante do início desse movimento deu-se em 1915, com a publicação da revista Orfeu, que tinha entre seus escritores Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa Luís de Montalvor, Almada Negueiros e até o brasileiro Ronald de Carvalho, todos com o objetivo de revolucionar e de atualizar a cultura portuguesa no cenário europeu. Assim como o Modernismo brasileiro, principalmente no âmbito da literatura, surge com uma poesia provocadora, irritante, e tinha como objetivo desestabilizar a ordem política, social e econômica da época, além de ser uma reação contra o inconformismo, o desejo de romper com o passado, e influenciada pela efervescência cultural européia. Assim como no modernismo brasileiro, o manifesto futurista pregava a destruição da sintaxe, o uso de símbolos matemáticos musicais e o menosprezo por adjetivos, advérbios e pontuação. Possuiu três fases distintas: A primeira fase, denominada orfeísmo, foi composta pelos escritores responsáveis pela revista Orpheu, e por trazer Portugal de volta às discussões culturais na Europa; a segunda fase, o presencismo, integrado por aqueles que ficaram fora da revista Orfeu, buscavam aprofundar a discussão sobre a teoria da literatura e sobre novas formas de expressão artística sem romper com as idéias da geração anterior e a terceira fase, a neo-realista, combateu diretamente o fascismo, defendeu uma literatura crítica que estivesse a serviço da sociedade, extremamente próxima a proposta do realismo brasileiro. Foi da primeira fase que participou um dos maiores poetas da história de Portugal, Fernando pessoa, o que melhor soube apresentar em versos os íntimos da contradição de ser humano.

Após discorrer sobre o processo de heteronímia, as características temáticas, estilísticas dos principais heterônimos de Pessoa, bem como se deu o surgimento  do Modernismo Português e suas especificidades, é pertinente que se faça uma análise possível das poesias: O Guardador de rebanhos (parte I) de Caeiro, Passagem das Horas de Álvaro de Campos  e  Para ser grande ser inteiro de Ricardo Reis. 

O Guardador de rebanhos
(Alberto Caeiro, 1911-1912)

       I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr do Sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
É se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do Sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me veem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Após conhecer as características da poesia de Caeiro, o aluno deverá seguir as seguintes etapas de leitura: A decodificação, leitura superficial; anotar as palavras desconhecidas para melhor conceituá-las; compreensão, discussão coletiva e primeiras impressões sobre a poesia, ele deverá buscar as respostas no próprio texto através das pistas contidas nele e por último fazer analogia e comparações estabelecendo um paralelo com as características da obra do autor estudado.
O aluno deverá perceber que o poeta, compara-se a um pastor que anda pelos campos a guardar rebanhos e que seus rebanhos são seus pensamentos. O sujeito poético identifica-se bastante com a natureza, pois anda ao ritmo das estações, compara os seus estados de espírito com momentos de natureza. Além disso, deve identificar o desejo de abolir a consciência, refutando o vicio de pensar e lamentando o fato de ter consciência dos seus pensamentos, enunciando o ato de sentir em detrimento ao pensar. O poema situa-nos desde o início nos domínios da metáfora: o pastor-poeta, o rebanho-ideias, o papel-pensamento.
Em seguida, apresentar trecho da poesia Passagem das horas, de Álvaro de Campos. Seguindo as mesmas etapas de leitura proposta anteriormente.

Passagem das horas
(Álvaro de Campos)
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô--ô-ôôô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...
Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

            O aluno deverá perceber o poema Passagem das horas, pertence a fase sensacionalista do autor, em que questiona suas angústias, desejos, pensamentos e lembranças que permeiam o ser humano em toda a sua existência. O eu-lírico mergulha numa viagem a seu próprio interior na busca do auto-conhecimento, redescobrindo a vida, a morte e o recomeço. A questão da identidade e da representação do tempo perpassa por um imaginário utópico. O tempo é compreendido como se a realidade pudesse ganhar sentido deslocando-se de um presente para o outro, o passado não existe porque há a movimentação dos seres e dos objetos. Passagem das horas possui o lema do sensacionalismo, sem implicação do tempo num só momento.
            Encerramos a sequência didática apresentando o poema Para ser grande ser inteiro de Ricardo Reis, propondo as etapas de leitura do início.

Para ser grande, sê inteiro
        (Ricardo Reis)
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis entre os heterónimos de Pessoa é o que prega ensinamentos nobres influenciado pela herança clássica do homem desde os gregos e romanos. Assim como Caeiro, aceita a vida sem pensar, porém senti em si a opressão da natureza e da vida e ressente-se com ela isso ocasiona em si um sofrimento de perda. Reis confia em deuses à maneira dos clássicos, em que os deuses exprimem a desconfiança nos homens. O aluno deve perceber o paradoxo que perpassa o poema. Ao mesmo tempo em que Reis se defende não haver fé em que o homem seja inteiro por outro lado afirma que não sejamos inteiros numa fé sem causa. Na filosofia de Reis o homem deverá encontrar nobreza no seu sofrimento, aceitando a dor da vida de maneira inteira, mesmo que não seja inteiro em sua fé. Nesse sentido, deve ser forte em ser inteiro na realidade. Nessa aceitação da dor o homem pode abdicar de tudo menos de si próprio. O que deve ser excluído da vida são as ilusões porque o leva a humilhação, como a religião e o amor.
Compreendemos que o desenvolvimento da prática leitora deve está fundamentado nas reais necessidades dos alunos e cabe ao professor viabilizar condições para um ensino interativo. Para atingir esse objetivo, é necessário, antes de tudo, que a proposta supere o tradicionalismo, em outras palavras, é preciso que os professores busquem estratégias que viabilizem o gosto pela leitura, bem como motivar os alunos a buscar suas próprias significações a partir do texto literário. Nessa perspectiva, estabelecer metas para leituras considerando os conhecimentos prévios. Por fim ratificamos a necessidade de uma prática em que o ato de ler se torne para os alunos uma prática significante e uma motivação para outras leituras, bem como, um recurso para a formação de leitores conscientes, criativos que seja capaz de compreender, analisar e atuar mais efetivamente na sociedade.


Bibliografia


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