Por: Valéria Queiroz Menezes
Trabalho apresentado no I CONLIRE - Congresso Nacional de Linguagens e Representações - Universidade estadual de Santa Cruz - UESC e no V SETIL - Seminário de Teoria e História Literária - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB
Resumo: Propõe-se, ao longo
desse artigo, a realização de uma exposição histórica literária acerca da
lírica trovadoresca estabelecendo um parâmetro comparativo com a composição “Violeiro”
de Elomar Figueira, cuja obra resgata características da cantiga lírica
ibérica, destacando a grande influência da cultura medieval no imaginário dos
violeiros nordestinos. Cultura que se recompõe através do tempo e da memória
traduzindo informações do outro e adquirindo um novo significado para um
determinado grupo.
Palavras-chave: Cultura,
Memória, Lírica trovadoresca, Violeiros nordestinos.
Introdução
As primeiras décadas do trovadorismo transcorreram durante a
Guerra da Reconquista do solo português ainda sob o domínio mourisco. Embora a prática
guerreira durante os anos de consolidação territorial e política fosse
absorvente, a atividade literária, todavia, beneficiou-se de condições propícias
para seu desenvolvimento. A poesia medieval portuguesa alcançou, na metade do
século XIII, seu ponto mais elevado. Mas é da Provença, região meridional da
França que se torna, no século XI, um grande pólo de atividade poética devido às
condições de luxo oferecidos pelos senhores feudais que financiavam e investiam
na produção de arte como maneira de obter reconhecimento e prestígio na
sociedade. Na Provença, o poeta era chamado pela alcunha de “troubador” que
corresponde em português a trovador, que originou, por sua vez, derivados como trovadorismo,
trovar, etc. Porém, no norte da França, recebia o nome de “trouviere”, cujo
radical “trouver” significava “achar”, o que vai nos remeter a idéia de que os
poetas deveriam “achar” sua canção e sua poesia, as quais eram cantadas com acompanhamento musical. Neste tempo, a produção cultural tinha como seu principal meio de
transmissão a oralidade. Os cantadores percorriam as aldeias em romarias e
cortejos, fazendo negócios, ou ainda pastoreando animais, demonstrando seu
repertório poético e musical. Essa cultura não era privativa apenas de uma
classe social, ao lado dos pastores, comerciantes, havia reis, príncipes e
grandes senhores que faziam de sua arte um complemento dos galanteios às damas
ou instrumento para satirizar.
A poesia trovadoresca era como mencionamos anteriormente,
transmitida oralmente, por esse motivo, muito destas acabou desaparecendo,
sobretudo as produções anteriores a 1198.
A fim de avivar a memória, incapaz de reter as inúmeras composições, as
letras passaram a ser transcritas em pequenos cadernos E, posteriormente, foram
agrupadas em “Cancioneiros”, isto é, uma coletânea de canções. Das grandes
coletâneas medievais da poesia galaico-portuguesa, apenas quatro chegaram até
os dias de hoje: Cancioneiro da Vaticana que foi copiado no final do século
XVI, de original de século anterior, inclui 1205 cantigas de escárnio, de amor
e de amigo; Cancioneiro da Ajuda, composto no final do século XIII e contêm 310
cantigas, quase todas de amor; Cancioneiro da Biblioteca Nacional, também
chamado de “Colocci-Brancuti”, é uma cópia italiana do século XVI, contém 1647
cantigas, de todos os tipos englobando trovadores tanto do reinado de Afonso
III quanto de D. Dinis e Cantigas de Santa Maria, estas últimas são um conjunto
de 427 composições que são divididas em dois grupos: o primeiro, as Cantigas de
Nossa Senhora, são narrativas de louvores à Virgem Maria, o segundo são cantigas
de louvor de cunho mais sério e profundo são como orações. Encontra-se
divididas em quatro manuscritos localizados um na Biblioteca Nacional da
Espanha, dois no El Escorial, município da Espanha e o último em Florença.
Tendo como base a maioria das cantigas que foram reunidas
nos cancioneiros podemos classificá-las em dois gêneros: o gênero lírico e o
gênero satírico. O primeiro apresentava as cantigas de amor, as quais o
cavalheiro dirige à mulher amada como uma figura idealizada tornando esse amor impossível
e as cantigas de amigo, que são de origem popular e apresentam marcas da
literatura oral, recursos muito usados, ainda hoje, nas canções populares. Este
tipo de cantiga teve suas origens na Península Ibérica. Embora o eu - lírico fosse
feminino, o autor era masculino. Encontramos nessas composições referências
sobre o amor a um amigo – namorado – que se encontra distante. Já as cantigas
satíricas se subdividiam em dois tipos: a cantiga de escárnio, construída a
partir de uma crítica velada e indireta, prevalecendo a ironia e o sarcasmo; a
cantiga de mau-dizer tem como característica uma sátira diretamente, carregada
de agressividade.
A influência da cultura medieval no
imaginário dos violeiros nordestinos.
A cantiga lírica trovadoresca,
que preservou-se por meio de traços discretos a cultura brasileira, originou-se
dos trovadores provençais do Sul da França, região que, a partir do século XII,
tornou-se um centro de difusão de obras poéticas. Ao longo do tempo, as cantigas
líricas sofreram modificações provenientes das mudanças culturais, mas determinados
aspectos foram preservados. É preciso considerar que o centro do trovadorismo
na Península Ibérica foi A região norte de Portugal e a Galiza e que imprimiu
nas canções temas épicos, que falavam de cavaleiros corajosos e de amores
impossíveis. Essas narrativas foram trazidas pelo colonizador português e
acabaram se incorporando à nossa cultura popular, principalmente no nordeste do
Brasil onde a voz do cantador violeiro torna-se intérprete fiel dos costumes,
das histórias – “causos” - e do heroísmo do povo nordestino como faz o cantador
Elomar.
2. O autor
Elomar Figueira é músico, cantador, poeta, arquiteto,
criador de bodes do interior do sertão baiano. Natural de Vitória da Conquista
é uma das mais significativas personagens da música popular brasileira. Conterrâneo
de Glauber Rocha, assíduo leitor da Bíblia e das histórias medievais, poeta
considerado uma mistura de profeta bíblico, cavaleiro andante e trovador. A
música de Elomar traz em sua essência, traços de musicalidade ibérica associada
ao sentimento mourisco. Além disso, a temática de suas obras possui forte referencias
medievais e cavalheirescas. Ele mesmo fala da influência da Idade Média em sua
produção musical: “Li muitos os romances de cavalaria, como as obras de
Alexandre Dumas, Michel Zevaco e outros”.
Apresentado por Vinicius de Morais no disco Biografia
Discografia Elomar das Barrancas do Rio Gavião em 1973.
A mim me parece um disparate que exista
mar em seu nome, porque um nada tem a ver com o outro. No dia em que "o
sertão virar mar", como na cantiga, minha impressão é que Elomar vai
juntar seus bodes, de que tem uma grande criação em sua fazenda "Duas
Passagens", entre as serras da Sussuarana e da Prata, em plena caatinga
baiana, e os irá tangendo até encontrar novas terras áridas, onde sobrevivam
apenas os bichos e as plantas que, como ele, não precisam de umidade para
viver; e ali fincar novos marcos e ficar em paz entre suas amigas as cascavéis
e as tarântulas, compondo ao violão suas lindas baladas e mirando sua plantação
particular de estrelas que, no ar enxuto e rigoroso, vão se desdobrando à
medida que o olhar se acomoda ao céu, até penetrar novas fazendas celestes
além, sempre além, no infinito latifúndio.
Pois assim é Elomar Figueira de Melo:
um príncipe da caatinga, que o mantém desidratado como um couro bem curtido, em
seus 34 anos de vida e muitos séculos de cultura musical, nisso que suas
composições são uma sábia mistura do romanceiro medieval, tal como era praticado
pelos reis-cavalheiros e menestréis errantes e que culminou na época de
Elizabeth, da Inglaterra; e do cancioneiro do Nordeste, com suas toadas em
terças plangentes e suas canções de cordel, que trazem logo à mente os brancos
e planos caminhos desolados do sertão, no fim extremo dos quais reponta de
repente um cego cantador com os olhos comidos de glaucoma e guiado por um
menino - anjo a cantar façanhas de antigos cangaceiros ou "causos"
escabrosos de paixões espúrias sob o sol assassino do agreste.
3. A Lírica Trovadoresca na cantoria
nordestina
Os violeiros do interior do sertão nordestino cumprem o
mesmo papel dos trovadores da antiguidade, pois levam ao conhecimento do povo
as venturas e desventuras de suas andanças. São intérpretes fieis dos costumes,
das histórias e do heroísmo do povo que habita essa região do Brasil, como
podemos observar nesses versos de “Violeiro” de autoria de Figueira: Vou cantá
no canto di primeiro/ as coisa lá da minha mudernage/ qui mi fizero errante e
violêro/ Eu falo sério e num é vadiage..
O povo nordestino é, sem dúvida, um povo religioso, portador
de fé inabalável, característica tal que costuma ser atribuída aos povos
primitivos. Assim, o caráter religioso perpassa toda a obra de Elomar. Em
muitas de suas composições é possível observar a presença da fé e da devoção do
seu povo, como podemos detectar a seguir: E
pra você qui agora está mi ouvino/Juro inté pelo Santo Minino/Vige Maria qui
ôve o queu digo/Si fo mintira mi manda um castigo. Bakhtin, ao estudar a
cultura popular, sugeriu que seu “espírito” seria marcado pela crença de uma
força superior. (BAKHTIN, 1987, p. 7-8)
A grande influência da cultura medieval na obra de Elomar
dá-se não apenas na estrutura musical como também na temática: histórias de
cavaleiros-vaqueiros, que são símbolos de força e de determinação, virtudes
muito valorizadas pelo sertanejo, “reis” e “rainhas”, senhores feudais do
sertão nordestino, e seus “castelos” erguidos em “distantes reinos”.
Cantadô di trovas i martelo
Di gabinete, lijêra i moirão
Ai cantadô já curri o mundo intêro
Já inté cantei nas portas di um castelo
Dum rei qui si chamava di Juão
Pode acriditá meu companhêro
Dispois di tê cantado u dia intêro
o rei mi disse fica, eu disse não.
Di gabinete, lijêra i moirão
Ai cantadô já curri o mundo intêro
Já inté cantei nas portas di um castelo
Dum rei qui si chamava di Juão
Pode acriditá meu companhêro
Dispois di tê cantado u dia intêro
o rei mi disse fica, eu disse não.
É
de extrema relevância a alma do violeiro das canções de Elomar Figueira, que
procura afirmar sua condição de homem popular, aedo livro, homem bravo que a
nada e a ninguém teme a não ser Deus. Para esse homem só existem três coisas
nesse mundo: amor, viola e liberdade.
Apois pro cantadô i violero
Só há treis coisa nesse mundo vão
Amô, furria, viola, nunca dinhero
Viola, furria, amo, dinhero não
Só há treis coisa nesse mundo vão
Amô, furria, viola, nunca dinhero
Viola, furria, amo, dinhero não
Si eu tivé di vivê obrigado
um dia i antes dêsse dia eu morro
Deus feiz os homi e os bicho tudo fôrro
já vi iscrito no livro sagrado
qui a vida nessa terra é uma passage
Cada um leva um fardo pesado
é um insinamento qui desde a mudernage
eu trago bem dentro do coração guardado.
um dia i antes dêsse dia eu morro
Deus feiz os homi e os bicho tudo fôrro
já vi iscrito no livro sagrado
qui a vida nessa terra é uma passage
Cada um leva um fardo pesado
é um insinamento qui desde a mudernage
eu trago bem dentro do coração guardado.
O
tema explorado pelo autor em o “Violeiro” apresenta duas tendências: a retomada
de temas religiosos e medievais e a preocupação de retratar o sertão baiano bem
como sua paisagem e sua gente. Além disso, o autor explicita marcas
regionalizantes, objetivando traduzir o mundo do
sertanejo como o vocabulário, por exemplo, que se constitui como mais um
símbolo que identifica sua comunidade. O próprio autor organiza um glossário
para cada composição, no caso da obra estudada destaca: “Furria”: folia, alegria, farra;
“apois”: então, pois; “hái”: há; “lijêra e moirão”: gêneros de cantoria. A
canção “Violeiro”, pertence ao LP “Das Barrancas do Rio Gavião”(1972) que
revelou algumas das mais bonitas composições do cancioneiro trovador Elomar
Figueira.
Na mencionada canção, Elomar retrata a
realidade dos sertões do nordeste brasileiro, de onde se inspira para cantar a
seca, o sol, a fome, o amor, a luta e a religiosidade de um povo.
Tive muita dô di num tê nada
pensano
qui êsse mundo é tudo tê
mais
só dispois di pená pela istrada
beleza
na pobreza é qui vim vê
vim
vê na procissão do Louvado-seja
I
o assombro das casa abandonada
côro
di cego na porta das igreja
I
o êrmo da solidão das istrada
Pispiano tudo do cumêço
eu
vô mostrá como faiz um pachola
qui
inforca o pescoço da viola
E
revira toda moda pelo avêsso
i
sem arrepará si é noite ou dia
vai
longe cantá o bem da furria
sem
um tostão na cuia u cantado
canta
inté morrê o bem do amo.
Conclusão
O autor narra, em primeira
pessoa, de forma nostálgica, acontecimentos de outrora, identifica suas
lembranças, suas raízes a seu povo, dessa maneira legitimando sua condição de
cantador, representante de sua gente, o sertanejo nordestino, para isso, utiliza uma linguagem coloquial que nos
remete ao galego-português, língua falada durante a Idade Média nas regiões de
Portugal e da Galiza, Espanha.
Segundo Jeruza Pires, (Armadilhas
da Memória, 1991, p. 142) nas barrancas do Rio Gavião e na Casa dos Carneiros
se encontra Elomar, o bardo-arquiteto que canta o sertão, a gesta dos
tropeiros, a transmissão de uma espécie de “vida paixão e morte do
catingueiro”. A saga do violeiro nordestino representa na obra deste baiano de Vitória
da Conquista não somente o resgate da cultura medieval como o discurso sobre os
valores tradicionais do homem do nordeste cujos ideais simbólicos são
independência e liberdade em uma trajetória épica e trágica.
Bibliografia
Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch. Cultura
popular na Idade Media e no Renascimento: o contexto de Francois Rakelais,
A. São Paulo. Hucitec, 1987. 419 p.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória: conto
e poesia popular / Jerusa Pires Ferreira. Salvador: Fundação Casa de Jorge
Amado, 1991. 100 p., 19cm. (Casa de palavras, 008).
GUERREIRO,
Simone. Tramas do sagrado: a poética do sertão de Elomar. Salvador:
Vento Leste, 2007.
MOISÉS,
Massaud. A literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1984.
PIMPÃO,
Álvaro J. da Costa. História da Literatura Portuguesa – Idade Média. 2ª
edição, Coimbra, Atlântida, 1959.
RAMOS,
Feliciano. História da Literatura Portuguesa. 6"
edição,
Braga, Livraria Cruz, 1963.
SARAIVA,
Antonio J. e LOPES, Oscar. A história da Literatura Portuguesa. 16ª ed.
Porto Editora, 1995.
silva neto, Serafim. História da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
Tudobem.com.
O Portal Alentejano. Disponível: http://www.portalalentejano.com/?p=678.
Acesso: 10/06/09
Wikipédia,
a enciclopédia livre. Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Galaico-portugu%C3%AAs.
Acesso: 06/06/2009
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