quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A LÍRICA TROVADORESCA NA CANTORIA NORDESTINA: ELOMAR E A SAGA DOS VIOLEIROS



                                                                Por: Valéria Queiroz Menezes



Trabalho apresentado no I CONLIRE - Congresso Nacional de Linguagens e Representações - Universidade estadual de Santa Cruz - UESC e no V SETIL - Seminário de Teoria e História Literária - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB

Resumo: Propõe-se, ao longo desse artigo, a realização de uma exposição histórica literária acerca da lírica trovadoresca estabelecendo um parâmetro comparativo com a composição “Violeiro” de Elomar Figueira, cuja obra resgata características da cantiga lírica ibérica, destacando a grande influência da cultura medieval no imaginário dos violeiros nordestinos. Cultura que se recompõe através do tempo e da memória traduzindo informações do outro e adquirindo um novo significado para um determinado grupo.
Palavras-chave: Cultura, Memória, Lírica trovadoresca, Violeiros nordestinos.

Introdução

As primeiras décadas do trovadorismo transcorreram durante a Guerra da Reconquista do solo português ainda sob o domínio mourisco. Embora a prática guerreira durante os anos de consolidação territorial e política fosse absorvente, a atividade literária, todavia, beneficiou-se de condições propícias para seu desenvolvimento. A poesia medieval portuguesa alcançou, na metade do século XIII, seu ponto mais elevado. Mas é da Provença, região meridional da França que se torna, no século XI, um grande pólo de atividade poética devido às condições de luxo oferecidos pelos senhores feudais que financiavam e investiam na produção de arte como maneira de obter reconhecimento e prestígio na sociedade. Na Provença, o poeta era chamado pela alcunha de “troubador” que corresponde em português a trovador, que originou, por sua vez, derivados como trovadorismo, trovar, etc. Porém, no norte da França, recebia o nome de “trouviere”, cujo radical “trouver” significava “achar”, o que vai nos remeter a idéia de que os poetas deveriam “achar” sua canção e sua poesia, as quais eram cantadas com acompanhamento musical. Neste tempo, a produção cultural tinha como seu principal meio de transmissão a oralidade. Os cantadores percorriam as aldeias em romarias e cortejos, fazendo negócios, ou ainda pastoreando animais, demonstrando seu repertório poético e musical. Essa cultura não era privativa apenas de uma classe social, ao lado dos pastores, comerciantes, havia reis, príncipes e grandes senhores que faziam de sua arte um complemento dos galanteios às damas ou instrumento para satirizar.
A poesia trovadoresca era como mencionamos anteriormente, transmitida oralmente, por esse motivo, muito destas acabou desaparecendo, sobretudo as produções anteriores a 1198.  A fim de avivar a memória, incapaz de reter as inúmeras composições, as letras passaram a ser transcritas em pequenos cadernos E, posteriormente, foram agrupadas em “Cancioneiros”, isto é, uma coletânea de canções. Das grandes coletâneas medievais da poesia galaico-portuguesa, apenas quatro chegaram até os dias de hoje: Cancioneiro da Vaticana que foi copiado no final do século XVI, de original de século anterior, inclui 1205 cantigas de escárnio, de amor e de amigo; Cancioneiro da Ajuda, composto no final do século XIII e contêm 310 cantigas, quase todas de amor; Cancioneiro da Biblioteca Nacional, também chamado de “Colocci-Brancuti”, é uma cópia italiana do século XVI, contém 1647 cantigas, de todos os tipos englobando trovadores tanto do reinado de Afonso III quanto de D. Dinis e Cantigas de Santa Maria, estas últimas são um conjunto de 427 composições que são divididas em dois grupos: o primeiro, as Cantigas de Nossa Senhora, são narrativas de louvores à Virgem Maria, o segundo são cantigas de louvor de cunho mais sério e profundo são como orações. Encontra-se divididas em quatro manuscritos localizados um na Biblioteca Nacional da Espanha, dois no El Escorial, município da Espanha e o último em Florença.
Tendo como base a maioria das cantigas que foram reunidas nos cancioneiros podemos classificá-las em dois gêneros: o gênero lírico e o gênero satírico. O primeiro apresentava as cantigas de amor, as quais o cavalheiro dirige à mulher amada como uma figura idealizada tornando esse amor impossível e as cantigas de amigo, que são de origem popular e apresentam marcas da literatura oral, recursos muito usados, ainda hoje, nas canções populares. Este tipo de cantiga teve suas origens na Península Ibérica. Embora o eu - lírico fosse feminino, o autor era masculino. Encontramos nessas composições referências sobre o amor a um amigo – namorado – que se encontra distante. Já as cantigas satíricas se subdividiam em dois tipos: a cantiga de escárnio, construída a partir de uma crítica velada e indireta, prevalecendo a ironia e o sarcasmo; a cantiga de mau-dizer tem como característica uma sátira diretamente, carregada de agressividade.


   A influência da cultura medieval no imaginário dos violeiros nordestinos.

A cantiga lírica trovadoresca, que preservou-se por meio de traços discretos a cultura brasileira, originou-se dos trovadores provençais do Sul da França, região que, a partir do século XII, tornou-se um centro de difusão de obras poéticas. Ao longo do tempo, as cantigas líricas sofreram modificações provenientes das mudanças culturais, mas determinados aspectos foram preservados. É preciso considerar que o centro do trovadorismo na Península Ibérica foi A região norte de Portugal e a Galiza e que imprimiu nas canções temas épicos, que falavam de cavaleiros corajosos e de amores impossíveis. Essas narrativas foram trazidas pelo colonizador português e acabaram se incorporando à nossa cultura popular, principalmente no nordeste do Brasil onde a voz do cantador violeiro torna-se intérprete fiel dos costumes, das histórias – “causos” - e do heroísmo do povo nordestino como faz o cantador Elomar.


2.    O autor


Elomar Figueira é músico, cantador, poeta, arquiteto, criador de bodes do interior do sertão baiano. Natural de Vitória da Conquista é uma das mais significativas personagens da música popular brasileira. Conterrâneo de Glauber Rocha, assíduo leitor da Bíblia e das histórias medievais, poeta considerado uma mistura de profeta bíblico, cavaleiro andante e trovador. A música de Elomar traz em sua essência, traços de musicalidade ibérica associada ao sentimento mourisco. Além disso, a temática de suas obras possui forte referencias medievais e cavalheirescas. Ele mesmo fala da influência da Idade Média em sua produção musical: “Li muitos os romances de cavalaria, como as obras de Alexandre Dumas, Michel Zevaco e outros.
Apresentado por Vinicius de Morais no disco Biografia Discografia Elomar das Barrancas do Rio Gavião em 1973.
A mim me parece um disparate que exista mar em seu nome, porque um nada tem a ver com o outro. No dia em que "o sertão virar mar", como na cantiga, minha impressão é que Elomar vai juntar seus bodes, de que tem uma grande criação em sua fazenda "Duas Passagens", entre as serras da Sussuarana e da Prata, em plena caatinga baiana, e os irá tangendo até encontrar novas terras áridas, onde sobrevivam apenas os bichos e as plantas que, como ele, não precisam de umidade para viver; e ali fincar novos marcos e ficar em paz entre suas amigas as cascavéis e as tarântulas, compondo ao violão suas lindas baladas e mirando sua plantação particular de estrelas que, no ar enxuto e rigoroso, vão se desdobrando à medida que o olhar se acomoda ao céu, até penetrar novas fazendas celestes além, sempre além, no infinito latifúndio.
Pois assim é Elomar Figueira de Melo: um príncipe da caatinga, que o mantém desidratado como um couro bem curtido, em seus 34 anos de vida e muitos séculos de cultura musical, nisso que suas composições são uma sábia mistura do romanceiro medieval, tal como era praticado pelos reis-cavalheiros e menestréis errantes e que culminou na época de Elizabeth, da Inglaterra; e do cancioneiro do Nordeste, com suas toadas em terças plangentes e suas canções de cordel, que trazem logo à mente os brancos e planos caminhos desolados do sertão, no fim extremo dos quais reponta de repente um cego cantador com os olhos comidos de glaucoma e guiado por um menino - anjo a cantar façanhas de antigos cangaceiros ou "causos" escabrosos de paixões espúrias sob o sol assassino do agreste.


3.    A Lírica Trovadoresca na cantoria nordestina


Os violeiros do interior do sertão nordestino cumprem o mesmo papel dos trovadores da antiguidade, pois levam ao conhecimento do povo as venturas e desventuras de suas andanças. São intérpretes fieis dos costumes, das histórias e do heroísmo do povo que habita essa região do Brasil, como podemos observar nesses versos de “Violeiro” de autoria de Figueira: Vou cantá no canto di primeiro/ as coisa lá da minha mudernage/ qui mi fizero errante e violêro/ Eu falo sério e num é vadiage..
O povo nordestino é, sem dúvida, um povo religioso, portador de fé inabalável, característica tal que costuma ser atribuída aos povos primitivos. Assim, o caráter religioso perpassa toda a obra de Elomar. Em muitas de suas composições é possível observar a presença da fé e da devoção do seu povo, como podemos detectar a seguir: E pra você qui agora está mi ouvino/Juro inté pelo Santo Minino/Vige Maria qui ôve o queu digo/Si fo mintira mi manda um castigo.  Bakhtin, ao estudar a cultura popular, sugeriu que seu “espírito” seria marcado pela crença de uma força superior. (BAKHTIN, 1987, p. 7-8)
A grande influência da cultura medieval na obra de Elomar dá-se não apenas na estrutura musical como também na temática: histórias de cavaleiros-vaqueiros, que são símbolos de força e de determinação, virtudes muito valorizadas pelo sertanejo, “reis” e “rainhas”, senhores feudais do sertão nordestino, e seus “castelos” erguidos em “distantes reinos”.
Cantadô di trovas i martelo
Di gabinete, lijêra i moirão
Ai cantadô já curri o mundo intêro
Já inté cantei nas portas di um castelo
Dum rei qui si chamava di Juão
Pode acriditá meu companhêro
Dispois di tê cantado u dia intêro
o rei mi disse fica, eu disse não.

        É de extrema relevância a alma do violeiro das canções de Elomar Figueira, que procura afirmar sua condição de homem popular, aedo livro, homem bravo que a nada e a ninguém teme a não ser Deus. Para esse homem só existem três coisas nesse mundo: amor, viola e liberdade.
    Apois pro cantadô i violero
    Só há treis coisa nesse mundo vão
    Amô, furria, viola, nunca dinhero
    Viola, furria, amo, dinhero não
Si eu tivé di vivê obrigado
um dia i antes dêsse dia eu morro
Deus feiz os homi e os bicho tudo fôrro
já vi iscrito no livro sagrado
qui a vida nessa terra é uma passage
Cada um leva um fardo pesado
é um insinamento qui desde a mudernage
eu trago bem dentro do coração guardado.

     O tema explorado pelo autor em o “Violeiro” apresenta duas tendências: a retomada de temas religiosos e medievais e a preocupação de retratar o sertão baiano bem como sua paisagem e sua gente. Além disso, o autor explicita marcas regionalizantes, objetivando traduzir o mundo do sertanejo como o vocabulário, por exemplo, que se constitui como mais um símbolo que identifica sua comunidade. O próprio autor organiza um glossário para cada composição, no caso da obra estudada destaca:Furria”: folia, alegria, farra; “apois”: então, pois; “hái”: há; “lijêra e moirão”: gêneros de cantoria. A canção “Violeiro”, pertence ao LP “Das Barrancas do Rio Gavião”(1972) que revelou algumas das mais bonitas composições do cancioneiro trovador Elomar Figueira.
       Na mencionada canção, Elomar retrata a realidade dos sertões do nordeste brasileiro, de onde se inspira para cantar a seca, o sol, a fome, o amor, a luta e a religiosidade de um povo.
                                                               Tive muita dô di num tê nada
                                                               pensano qui êsse mundo é tudo tê
                                                               mais só dispois di pená pela istrada
                                                               beleza na pobreza é qui vim vê
                                                               vim vê na procissão do Louvado-seja
                                                               I o assombro das casa abandonada
                                                               côro di cego na porta das igreja
                                                               I o êrmo da solidão das istrada

Pispiano tudo do cumêço
                                                               eu vô mostrá como faiz um pachola
                                                               qui inforca o pescoço da viola
                                                               E revira toda moda pelo avêsso
                                                               i sem arrepará si é noite ou dia
                                                               vai longe cantá o bem da furria
                                                               sem um tostão na cuia u cantado
                                                               canta inté morrê o bem do amo.

    Conclusão
         O autor narra, em primeira pessoa, de forma nostálgica, acontecimentos de outrora, identifica suas lembranças, suas raízes a seu povo, dessa maneira legitimando sua condição de cantador, representante de sua gente, o sertanejo nordestino, para isso, utiliza uma linguagem coloquial que nos remete ao galego-português, língua falada durante a Idade Média nas regiões de Portugal e da Galiza, Espanha.
        Segundo Jeruza Pires, (Armadilhas da Memória, 1991, p. 142) nas barrancas do Rio Gavião e na Casa dos Carneiros se encontra Elomar, o bardo-arquiteto que canta o sertão, a gesta dos tropeiros, a transmissão de uma espécie de “vida paixão e morte do catingueiro”. A saga do violeiro nordestino representa na obra deste baiano de Vitória da Conquista não somente o resgate da cultura medieval como o discurso sobre os valores tradicionais do homem do nordeste cujos ideais simbólicos são independência e liberdade em uma trajetória épica e trágica.


Bibliografia

 Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch. Cultura popular na Idade Media e no Renascimento: o contexto de Francois Rakelais, A. São Paulo. Hucitec, 1987. 419 p.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória: conto e poesia popular / Jerusa Pires Ferreira. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991. 100 p., 19cm. (Casa de palavras, 008).
GUERREIRO, Simone. Tramas do sagrado: a poética do sertão de Elomar. Salvador: Vento Leste, 2007.
MOISÉS, Massaud. A literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1984.
PIMPÃO, Álvaro J. da Costa. História da Literatura Portuguesa – Idade Média. 2ª edição, Coimbra, Atlântida, 1959.
Porteira Oficial de Elomar. Disponível: http://www.elomar.com.br/. Acesso: 08/06/09
RAMOS, Feliciano. História da Literatura Portuguesa. 6" edição, Braga, Livraria Cruz, 1963.
SARAIVA, Antonio J. e LOPES, Oscar. A história da Literatura Portuguesa. 16ª ed. Porto Editora, 1995.
silva neto, Serafim. História da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
Tudobem.com. O Portal Alentejano.  Disponível: http://www.portalalentejano.com/?p=678. Acesso: 10/06/09
Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Galaico-portugu%C3%AAs. Acesso: 06/06/2009






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