Por: Valéria Queiroz Menezes
A novela da época moderna coincide historicamente com a
ascensão da burguesia, isso permitiu uma ampliação dos temas tratados por essas
narrações como, por exemplo: a psicologia, os conflitos sociais e políticos.
Segundo Bela Josef,(1993, p.15), a novela se transformou, ao recorrer dos
últimos séculos, na mais complexa forma de expressão literária dos tempos
modernos, apresenta a narração de eventos, testemunho imediato, análise de
sentimentos, registros de vicissitudes sociais ou políticas, serviu de valores
ideológicos, refletiu aspectos da vida social como da política e também
expressou angústias e costumes coletivos.
O novo
romance procura identidade, não somente através da denúncia social, mas também
através da realidade presente na arte. Há uma nova exigência do fazer artístico
e a arte contemporânea procura novos rumos transformando-se em um instrumento
de investigação. A noção de tempo deixa de ser cronológica por não corresponder
a nova concepção de tempo, o psicológico, afirma Bella Josef (1993, p.23) “[...]
o espaço destrói o tempo [...] destrói o espaço. Estabelece-se, assim, nova
concepção de temporalidade”.
O novo
romance hispano-americano nasceu do novo contexto em que o escritor tem
consciência de sua temporalidade ao focalizar as crises de uma cultura institucional
desvinculada do homem. “A linguagem literária vai criar uma significação a
partir de uma ‘ausência’ estabelecendo-se como universo autônomo, em relação indireta
com o real. Por isso, a obra vai instaurar seu próprio sentido” (Josef, 1993,
p.37)
O romance hispano-americano adquiriu, sem
esquecer-se dos modelos europeus, características próprias. A dupla função
mimética da realidade hispano-americana deu lugar a uma construçãorenovadora da
realidade e da arte, em que se destaca: Miguel Asturias, Carlos Fuentes, Juan
Rulfo, Julio Cortázar, Alejo Carpentier, Mario Vargas Lllosa, Gabriel García
Márquez, Manuel Puin, entre outros. Esses escritores, embora pertencentes a
países diversos e obras que possui disparidades tem um ponto em comum em suas
obras: as problemáticas do continente hispano-americano.
Linda Hutcheon,
em sua obra, Poética do Pós Modernismo,
estabelece como “metaficção historiográfica” as obras pós-modernas que “ficcionam”
e reinterpretam um acontecimento histórico problematizando-o. Assim permite uma
nova construção da verdade. Segundo a autora, o que vai a distinguir-se como
característica da metaficção, é a relação que possuem os personagens com o eixo
entre o presente e o passado. Nesse sentido, conhecem e discutem esse passado
no momento presente em que vivem. O fato histórico é repensado de maneira
crítica. Hutcheon teoriza acerca da novela histórica a partir dos pressupostos
de Lukács, atualizando seus conceitos sobre esse gênero. Quando se narra uma
metaficção historiográfica, afirma a autora, há uma contaminação recíproca
entre elementos de ambos os campos do conhecimento, porque se questiona a
neutralidade, a impessoalidade e a transparência dos fatos que são próprios da
historiografia. Nesse gênero, o censo comum é desconsiderado, tanto o fato
histórico como a ficção estão relacionados em um discurso cujos sistemas de
significação têm como objetivo a verdade.
A autora
chama a atenção para a necessidade de um estudo completo e com profundidade
sobre as questões que cercam a natureza da identidade e da subjetividade de
obra, que consiste no referencial de representação; a natureza intertextual do
passado e a influência ideológica embutida no ato de escrever a cerca da
historia. A teoria da literatura, a respeito das manifestações
historiográficas, marca as formas de narração com as seguintes características:
vários pontos de vista e a presença do narrador onipotente que revela tanto os
sentidos do texto quanto o fato o contexto com o leitor. Assim, a novela
pós-moderna explora as dicotomias: ficção-história, presente-passado e
particular-geral. Também representa o passado tanto na ficção quanto na
história revelando-se o presente de forma pouco concludente.No entanto, a
presença de personagens reais nesta obra não garante a veracidade, embora o
autor faça uma rigorosa investigação.
Dessa maneira, a narração de Urânia se
alterna entre o presente e o passado como podemos observar nos fragmentos abaixo.
O mesmo acontece com a narração do ditador em seu último dia de vida.
Es
un olor cálido, que toca alguna fibra íntima de su memoria y la devuelve a su
infancia, a las trinitarias multicolores colgadas de trechos y balcones, a esta
avenida Máximo Gómez (Losa, 2000, p. 21).
Cerró
los ojos, preguntandose si su memoria Le permitiría recordar con exactitud
aquella cita. Sí ahí la tenia completa, venida a él desde aquella
conmemoración, el veintinueve aniversario de su primera elección (Llosa, 2000,
p. 246)
Durante a trama são reveladas as atrocidades
cometidas por esse ditador e sua relação com Urânia, ocorrendo à mescla de
personagens ficcionais e históricos. O escritor tem diante de si um novo
conceito de realidade, cria um personagem complexo e o dispõe no centro da
historia.
Trujillo
era magnánimo, cierto. Podía ser cruel, cuando el país lo exigía. Pero,
también, generoso, magnifico como Petronio de Quo Vadis? Al que siempre citaba
[…] Trujillo no sólo había sido Jefe, el estadista, el fundador de República,
sino un modelo humano, un padre. (Llosa, 2000, p. 307)
A figura do ditador sempre foi odiada ou
amada, o que marca sua vida é a solidão. O rastro de infelicidade é
característica da personalidade dos ditadores, definido, desde a época de
Platão, como motivação para uma conduta de excesso. Vargas Llosa representa a
solidão do ditador Leónidas Trujillo através dos seus sonhos repletos de maus
presságios, onde se sentia prisioneiroem uma teia de aranha, ou devorado por um
bicho peludo e cheio de olhos.
Despierto,
paralizado por una sensación de catástrofe. Inmóvil, pestañeaba en la
oscuridad, prisionero en una telaraña, a punto de ser devorado por un bicho
peludo lleno de ojos. (Llosa 2000, p. 27).
A maneira como Urânia trata seu pai, de início,
pode parecer cruel, pois ela vai reviver fatos de seu próprio passado, da sua
cidade e de seu povo, mas é nos capítulos que se seguem que o leitor vai tomar
conhecimento de sua tragédia pessoal e também do perfil do ditador na voz de
cada um dos narradores, que cansados das atrocidades cometidas pelo ditador
subvertem a “ordem” e tramam sua morte. O romance se divide em quatro capítulos
não intitulados, cada um narrando o motivo que levou os integrantes imediatos
da conspiração a tramar a morte de Trujillo: o turco Salvador Estrella Sadhalá,
AntonioImbert, Antonio de La Maza
e Amado García Guerrero.
Como a América Hispânica é palco de regimes
déspotas, surgem no contexto literário obras que refletem o ambiente de
crueldade, para apresentar o mito do poder. Em uma entrevista com Sanjuana
Martinez em 02/05/2001, Llosa declarou que, falando desse ditador estará
falando de todos os ditadores latino-americanos e que alguns estão mortos outros
desgraçadamente ainda vivem. Segundo Bella Josef (1993, p. 41) o contexto
cultural hispano-americano que configura a novela mostra ao lado de mitos e
arquétipos a psique de um continente apreendido e conservado na ficcionalidade.
Llosa descreve o “Generalíssimo” como um
tirano sanguinário e convencido, que se sente encarregado da sublime missão de
proteger sua pátria como um pai ou como um deus. O caráter machista ascende a
níveis psicológicos na medida em que, para obter um aspecto de dignidade e
importância, os pais, principalmente os mais humildes, entregam-no suas filhas
ainda adolescentes para serem suas amantes. Na figura do tirano há certa
obsessão pela mãe e uma carência da figura paterna. O Patriarca impõe uma
santificação da sua mãe, a Bedición Alvorada, que era tema constante de
homenagens na rede escolar, mas provoca a morte de sua esposa e de seu filho.
Em cada capítulo um personagem é posto em
destaque pelo autor. Com isso o leitor vai desenhando o arquétipo do ditador.
Cada voz exprime uma visão sua, mas a voz feminina de Urânia Cabral, filha do
senador do governo, que vai conduzir a narrativa, que se configura impregnada
de suas recordações que se mesclam com o presente. Esta se estende por três
décadas: de 1931; ascensão de Trujillo até sua morte em 1961, quando governou a
República Dominica de maneira absoluta.
A obra literária em análise faz um regate
histórico, pois apresenta pessoas que representavam o poder da época, como o chefe
do temido SIM, Jonnny Abbes, conhecido por sua crueldade e o pai de Urânia
Augustín Cabral, senador e ministro do governo. Trás também como se configura a
família de Trujillo, os filhos Ramfis e Radhamés.
Ao final da narrativa, se descobre o motivo
do retorno de Urânia, a prestação de contas com seu pai que a entregou, ainda
criança, como objeto sexual do ditador dominicano, com o objetivo de recuperar
seu prestigio com este.
No processo de reconstrução da tirania
trujilista, Llosa faz uso de diferentes narrativas que utiliza como ponto
referencial a morte do ditador, como forma de propiciar ao leitor uma reflexão critica
dos fatos, através da historia dos homens que se revoltaram contra o sistema
opressor. A obra possui dois núcleos narrativos: um que resgata os fatos
históricos outroa ficção.
O bode,
apelido do “Generalissimo”, traduz de forma simbólica e analógica a
personalidade desse ditador. O bode possui uma representação diversa em
diferentes culturas como, por exemplo: No Egito, as mulheres faziam preces para
ele quando queriam conceber um filho; na Itália, representa as profundidades e
a morte, na religião cristã, é associado à luxúria e ao demônio, no contexto
narrativo da obra estudada, a festa do bode, se refere à grande “comemoração”
do poder, quando através das relações, o ditador vai disseminando o mal por
toda uma nação.
Urânia é um
personagem fictício de La Fiesta del Chivo, é também a vítima do
ditador, do bode, e a voz feminina que, na narração, representa as mulheres que
foram oprimidas, abusadas, silenciadas durante a terrível ditadura de Leónidas
Trujillo na Republica Dominicana. As ditaduras latino-americanas tiveram um
caráter machista até porque o machismo é um fenômeno típico do latino. Um
regime que possui um poder absoluto como as ditaduras convertem as mulheres em
meros objetos, em seres vulneráveis. O sexo para Trujillo representava um valor
cultivado pela sociedade machista e por isso simbolizava seu poderio. Ele
dormia com as mulheres de seus colaboradores para reafirmar sua autoridade
sobre eles.
Urânia, na
mitologia grega, representa o céu e a luz, o autor faz uma vinculação arquetípica
desde as primeiras linhas da obra, como podemos observar no seguinte fragmento:
“Urania. No Le habían hecho un favor a sus
padres; su nombre daba la Idea
de un planeta; de un mineral (Llosa,2000, p. 11)”
Não é de se
estranhar que Vargas Llosa, se utilizasse tal nome como representação simbólica
de uma mulher, que ainda tivesse sofrido os abusos da ditadura, volta a seu país
como uma pessoa bem sucedida de fato. Em seu retorno, se dispõe a acertar as
contas com seu passado, esse intimamente relacionado com a tirania do ditador
Trujillo.
Rafael
Leonidas Trujillo Molina possuía um apelido de “O Bode” por seu incontrolável
apetite sexual. Ele não conhecia limites, possuía sexualmente as mulheres e
filhas de seus colaboradores, muitas vezes com a permissão destes, como foi o
caso de Augutín Cabral, que para ser aceito uma vez mais entre os favoritos do
tirano, lhe oferece sua única filha, Urânia, seu grande desejo, incentivado por
Manuel Alfonso como podemos comprovar em um trecho da obra.
¿Saben una cosa Cerebrito? Yo no hubiera vacilado ni
un segundo. No para reconquistar su confianza, no para mostrarle que soy capaz
de cualquier sacrifico por él. Simplemente, porque nada me daría más
satisfacción, más felicidad, que el Jefe hiciera gozar a una hija mía y gozara
con ella. (Llosa,
p.376)
Assim, foi
conduzido o destino da protagonista, que em meio a vozes masculinas setorna a
“luz” que vai clarear os excessos e a violência sofrida por sua nação tão jovem
quanto ela.
A festa do
bode é uma obra literária que entrecruza ficção, história y política para
narrar acontecimentos, segundo palavras do autor, “tan incríbles que superan cualquier
ficcion”. Uma historia que, ainda possa parecer distante, é um retrato de uma
sociedade em que o poder dos fortes sobrepõe aos mais fracos
e se torna condição muito presente em nossa memória coletiva.
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