quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A Metaficção Historiográfica em La Fiesta del Chivo, de Mário Vargas Llosa



Por: Valéria Queiroz Menezes

Trabalho apresentado no XIV Encontro Baiano de Estudante de Letras EBEL - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB - 2010

A novela da época moderna coincide historicamente com a ascensão da burguesia, isso permitiu uma ampliação dos temas tratados por essas narrações como, por exemplo: a psicologia, os conflitos sociais e políticos. Segundo Bela Josef,(1993, p.15), a novela se transformou, ao recorrer dos últimos séculos, na mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos, apresenta a narração de eventos, testemunho imediato, análise de sentimentos, registros de vicissitudes sociais ou políticas, serviu de valores ideológicos, refletiu aspectos da vida social como da política e também expressou angústias e costumes coletivos.
            O novo romance procura identidade, não somente através da denúncia social, mas também através da realidade presente na arte. Há uma nova exigência do fazer artístico e a arte contemporânea procura novos rumos transformando-se em um instrumento de investigação. A noção de tempo deixa de ser cronológica por não corresponder a nova concepção de tempo, o psicológico, afirma Bella Josef (1993, p.23) “[...] o espaço destrói o tempo [...] destrói o espaço. Estabelece-se, assim, nova concepção de temporalidade”.
            O novo romance hispano-americano nasceu do novo contexto em que o escritor tem consciência de sua temporalidade ao focalizar as crises de uma cultura institucional desvinculada do homem. “A linguagem literária vai criar uma significação a partir de uma ‘ausência’ estabelecendo-se como universo autônomo, em relação indireta com o real. Por isso, a obra vai instaurar seu próprio sentido” (Josef, 1993, p.37)
            O romance hispano-americano adquiriu, sem esquecer-se dos modelos europeus, características próprias. A dupla função mimética da realidade hispano-americana deu lugar a uma construçãorenovadora da realidade e da arte, em que se destaca: Miguel Asturias, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Julio Cortázar, Alejo Carpentier, Mario Vargas Lllosa, Gabriel García Márquez, Manuel Puin, entre outros. Esses escritores, embora pertencentes a países diversos e obras que possui disparidades tem um ponto em comum em suas obras: as problemáticas do continente hispano-americano.
            Linda Hutcheon, em sua obra, Poética do Pós Modernismo, estabelece como “metaficção historiográfica” as obras pós-modernas que “ficcionam” e reinterpretam um acontecimento histórico problematizando-o. Assim permite uma nova construção da verdade. Segundo a autora, o que vai a distinguir-se como característica da metaficção, é a relação que possuem os personagens com o eixo entre o presente e o passado. Nesse sentido, conhecem e discutem esse passado no momento presente em que vivem. O fato histórico é repensado de maneira crítica. Hutcheon teoriza acerca da novela histórica a partir dos pressupostos de Lukács, atualizando seus conceitos sobre esse gênero. Quando se narra uma metaficção historiográfica, afirma a autora, há uma contaminação recíproca entre elementos de ambos os campos do conhecimento, porque se questiona a neutralidade, a impessoalidade e a transparência dos fatos que são próprios da historiografia. Nesse gênero, o censo comum é desconsiderado, tanto o fato histórico como a ficção estão relacionados em um discurso cujos sistemas de significação têm como objetivo a verdade.
            A autora chama a atenção para a necessidade de um estudo completo e com profundidade sobre as questões que cercam a natureza da identidade e da subjetividade de obra, que consiste no referencial de representação; a natureza intertextual do passado e a influência ideológica embutida no ato de escrever a cerca da historia. A teoria da literatura, a respeito das manifestações historiográficas, marca as formas de narração com as seguintes características: vários pontos de vista e a presença do narrador onipotente que revela tanto os sentidos do texto quanto o fato o contexto com o leitor. Assim, a novela pós-moderna explora as dicotomias: ficção-história, presente-passado e particular-geral. Também representa o passado tanto na ficção quanto na história revelando-se o presente de forma pouco concludente.No entanto, a presença de personagens reais nesta obra não garante a veracidade, embora o autor faça uma rigorosa investigação.
            La Fiesta del Chivo foi publicada em 2000, se trata de uma narrativa histórica onde Mario Vargas Llosa reconstrói, através da ficção, o período da ditadura de Rafael Leónidas Trujillo na República Dominicana, compreendido entre 1930 a 1961. A novela apresenta histórias não simultâneas embora relacionadas entre si. A história da protagonista Urânia dá início e término à obra, no mesmo espaço físico, o Hotel Jaguara. O retorno dessa personagem, a República Dominicana, vai revelar ao leitor o motivo de sua fuga para os Estados Unidos. É por meio de sua memória que Urânia retoma um período especifico de Santo Domingo, o que se confunde com seus própriospensamentos. “No recuerda que, cuando era niña y Santo Domingo se llamaba Ciudad Trujillo” (2000, p.15). Concomitantemente, outros relados vão sendo costurados por outros personagens, que descrevem seu envolvimento com o ditador. É possível perceber  os saltos temporais para analisar os fatos no presente de forma crítica, técnica utilizada por autores posmodernos na construção do discurso literário.
Dessa maneira, a narração de Urânia se alterna entre o presente e o passado como podemos observar nos fragmentos abaixo. O mesmo acontece com a narração do ditador em seu último dia de vida.

Es un olor cálido, que toca alguna fibra íntima de su memoria y la devuelve a su infancia, a las trinitarias multicolores colgadas de trechos y balcones, a esta avenida Máximo Gómez (Losa, 2000, p. 21).

Cerró los ojos, preguntandose si su memoria Le permitiría recordar con exactitud aquella cita. Sí ahí la tenia completa, venida a él desde aquella conmemoración, el veintinueve aniversario de su primera elección (Llosa, 2000, p. 246)
           
Durante a trama são reveladas as atrocidades cometidas por esse ditador e sua relação com Urânia, ocorrendo à mescla de personagens ficcionais e históricos. O escritor tem diante de si um novo conceito de realidade, cria um personagem complexo e o dispõe no centro da historia.
Em La Fiesta del Chivo, uma verdade não podia dar conta das atitudes dos conspiradores, por exemplo, pois os mesmos eram trujilistas ferrenhos, que entregavam sua vida e sua dignidade a esse ditador considerado como o salvador da pátria.:
Trujillo era magnánimo, cierto. Podía ser cruel, cuando el país lo exigía. Pero, también, generoso, magnifico como Petronio de Quo Vadis? Al que siempre citaba […] Trujillo no sólo había sido Jefe, el estadista, el fundador de República, sino un modelo humano, un padre. (Llosa, 2000, p. 307)

A figura do ditador sempre foi odiada ou amada, o que marca sua vida é a solidão. O rastro de infelicidade é característica da personalidade dos ditadores, definido, desde a época de Platão, como motivação para uma conduta de excesso. Vargas Llosa representa a solidão do ditador Leónidas Trujillo através dos seus sonhos repletos de maus presságios, onde se sentia prisioneiroem uma teia de aranha, ou devorado por um bicho peludo e cheio de olhos.

Despierto, paralizado por una sensación de catástrofe. Inmóvil, pestañeaba en la oscuridad, prisionero en una telaraña, a punto de ser devorado por un bicho peludo lleno de ojos.  (Llosa 2000, p. 27).

A maneira como Urânia trata seu pai, de início, pode parecer cruel, pois ela vai reviver fatos de seu próprio passado, da sua cidade e de seu povo, mas é nos capítulos que se seguem que o leitor vai tomar conhecimento de sua tragédia pessoal e também do perfil do ditador na voz de cada um dos narradores, que cansados das atrocidades cometidas pelo ditador subvertem a “ordem” e tramam sua morte. O romance se divide em quatro capítulos não intitulados, cada um narrando o motivo que levou os integrantes imediatos da conspiração a tramar a morte de Trujillo: o turco Salvador Estrella Sadhalá, AntonioImbert, Antonio de La Maza e Amado García Guerrero.
Como a América Hispânica é palco de regimes déspotas, surgem no contexto literário obras que refletem o ambiente de crueldade, para apresentar o mito do poder. Em uma entrevista com Sanjuana Martinez em 02/05/2001, Llosa declarou que, falando desse ditador estará falando de todos os ditadores latino-americanos e que alguns estão mortos outros desgraçadamente ainda vivem. Segundo Bella Josef (1993, p. 41) o contexto cultural hispano-americano que configura a novela mostra ao lado de mitos e arquétipos a psique de um continente apreendido e conservado na ficcionalidade.
Llosa descreve o “Generalíssimo” como um tirano sanguinário e convencido, que se sente encarregado da sublime missão de proteger sua pátria como um pai ou como um deus. O caráter machista ascende a níveis psicológicos na medida em que, para obter um aspecto de dignidade e importância, os pais, principalmente os mais humildes, entregam-no suas filhas ainda adolescentes para serem suas amantes. Na figura do tirano há certa obsessão pela mãe e uma carência da figura paterna. O Patriarca impõe uma santificação da sua mãe, a Bedición Alvorada, que era tema constante de homenagens na rede escolar, mas provoca a morte de sua esposa e de seu filho.
            Em cada capítulo um personagem é posto em destaque pelo autor. Com isso o leitor vai desenhando o arquétipo do ditador. Cada voz exprime uma visão sua, mas a voz feminina de Urânia Cabral, filha do senador do governo, que vai conduzir a narrativa, que se configura impregnada de suas recordações que se mesclam com o presente. Esta se estende por três décadas: de 1931; ascensão de Trujillo até sua morte em 1961, quando governou a República Dominica de maneira absoluta.
A obra literária em análise faz um regate histórico, pois apresenta pessoas que representavam o poder da época, como o chefe do temido SIM, Jonnny Abbes, conhecido por sua crueldade e o pai de Urânia Augustín Cabral, senador e ministro do governo. Trás também como se configura a família de Trujillo, os filhos Ramfis e Radhamés.
            Ao final da narrativa, se descobre o motivo do retorno de Urânia, a prestação de contas com seu pai que a entregou, ainda criança, como objeto sexual do ditador dominicano, com o objetivo de recuperar seu prestigio com este.
            No processo de reconstrução da tirania trujilista, Llosa faz uso de diferentes narrativas que utiliza como ponto referencial a morte do ditador, como forma de propiciar ao leitor uma reflexão critica dos fatos, através da historia dos homens que se revoltaram contra o sistema opressor. A obra possui dois núcleos narrativos: um que resgata os fatos históricos outroa ficção.
            O bode, apelido do “Generalissimo”, traduz de forma simbólica e analógica a personalidade desse ditador. O bode possui uma representação diversa em diferentes culturas como, por exemplo: No Egito, as mulheres faziam preces para ele quando queriam conceber um filho; na Itália, representa as profundidades e a morte, na religião cristã, é associado à luxúria e ao demônio, no contexto narrativo da obra estudada, a festa do bode, se refere à grande “comemoração” do poder, quando através das relações, o ditador vai disseminando o mal por toda uma nação.
            Urânia é um personagem fictício de La Fiesta del Chivo, é também a vítima do ditador, do bode, e a voz feminina que, na narração, representa as mulheres que foram oprimidas, abusadas, silenciadas durante a terrível ditadura de Leónidas Trujillo na Republica Dominicana. As ditaduras latino-americanas tiveram um caráter machista até porque o machismo é um fenômeno típico do latino. Um regime que possui um poder absoluto como as ditaduras convertem as mulheres em meros objetos, em seres vulneráveis. O sexo para Trujillo representava um valor cultivado pela sociedade machista e por isso simbolizava seu poderio. Ele dormia com as mulheres de seus colaboradores para reafirmar sua autoridade sobre eles.
            Urânia, na mitologia grega, representa o céu e a luz, o autor faz uma vinculação arquetípica desde as primeiras linhas da obra, como podemos observar no seguinte fragmento: “Urania. No Le habían hecho un favor a sus padres; su nombre daba la Idea de un planeta; de un mineral (Llosa,2000, p. 11)”
            Não é de se estranhar que Vargas Llosa, se utilizasse tal nome como representação simbólica de uma mulher, que ainda tivesse sofrido os abusos da ditadura, volta a seu país como uma pessoa bem sucedida de fato. Em seu retorno, se dispõe a acertar as contas com seu passado, esse intimamente relacionado com a tirania do ditador Trujillo.
            Rafael Leonidas Trujillo Molina possuía um apelido de “O Bode” por seu incontrolável apetite sexual. Ele não conhecia limites, possuía sexualmente as mulheres e filhas de seus colaboradores, muitas vezes com a permissão destes, como foi o caso de Augutín Cabral, que para ser aceito uma vez mais entre os favoritos do tirano, lhe oferece sua única filha, Urânia, seu grande desejo, incentivado por Manuel Alfonso como podemos comprovar em um trecho da obra.
¿Saben una cosa Cerebrito? Yo no hubiera vacilado ni un segundo. No para reconquistar su confianza, no para mostrarle que soy capaz de cualquier sacrifico por él. Simplemente, porque nada me daría más satisfacción, más felicidad, que el Jefe hiciera gozar a una hija mía y gozara con ella. (Llosa, p.376)
            Assim, foi conduzido o destino da protagonista, que em meio a vozes masculinas setorna a “luz” que vai clarear os excessos e a violência sofrida por sua nação tão jovem quanto ela.
            A festa do bode é uma obra literária que entrecruza ficção, história y política para narrar acontecimentos, segundo palavras do autor, “tan incríbles que superan cualquier ficcion”. Uma historia que, ainda possa parecer distante, é um retrato de uma sociedade em que o poder dos fortes sobrepõe aos mais fracos e se torna condição muito presente em nossa memória coletiva.




REFERENCIAS

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BELLA, Josef. Mario Vargas Llosa e a redefinição da realidade. In: O Espaço Reconquistado uma releitura – Linguagem e criação no romance hispano-americano contemporâneo. 2ª Ed. Paz e Terra, São Paulo: 1993. P. 109-122.

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LANIS, Claudia. História e ficção em La fiestadelChivo. Disponible en: <http://www.buenastareas.com/ensayos/Historia-E-Ficcao-Em-La-Fiesta/253179.html.>Fecha de acceso: 15 de abr.2010.
                                                                                
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PULGARÍN, Amália Cuadrado. Posmodernismo y novela histórica. In: Metaficción Historiográfica en narrativa hispánica posmodernista. Editorial Fundamentos, Madrid: 1995. P. 203-212.

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